Uma questão de soberania
Portugal aderiu, em 1986, à então designada Comunidade Económica Europeia. Cerca de duas décadas depois a instituição já mudou o nome para União Europeia [UE] mais do que duplicou o número de membros (são agora 27 países) e as leis que regem a vida dos portugueses são, cada vez mais, definidas em Bruxelas e Estrasburgo.
Tenta-se agora implementar um Tratado para alargar ainda mais os poderes da UE sobre os países-membros. Para evitar uma possível recusa dos portugueses a este Tratado, o Governo liderado pelo primeiro-ministro José Sócrates parece não ser grande adepto de uma consulta popular em forma de referendo, apesar de ser essa a sua função definida pela Constituição da República Portuguesa:
Artigo 115.º (Referendo)
3. O referendo só pode ter por objecto questões de relevante interesse nacional que devam ser decididas pela Assembleia da República ou pelo Governo através da aprovação de convenção internacional ou de acto legislativo.
Existem, aliás, outros artigos da CRP que complementam este imperativo de exercício duma consulta popular:
Artigo 2.º (Estado de direito democrático)
A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.
Artigo 9.º (Tarefas fundamentais do Estado)
São tarefas fundamentais do Estado:
c) Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais;
Artigo 48.º (Participação na vida pública)
1. Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos.
Porém, eu próprio não sou defensor do referendo ao Tratado. Trata-se de um acto dispensável face à inconstitucionalidade da própria adesão à União Europeia e consequente “subjugação” legal do Estado português.
Mesmo tendo em conta as revisões que tentaram enquadrar na nossa Constituição a participação portuguesa na União Europeia, um Artigo tem precedente e sobrepõe-se aos restantes:
Artigo 3.º (Soberania e legalidade)
1. A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.
Por maiores que possam ser os benefícios da adesão à UE, a soberania do povo português não pode ser partilhada com instituições estrangeiras.
8 comentários:
Porque é que o artigo 3.º tem precedência sobre o artigo 7.º n.º 6 e sobre o artigo 8.º n.º 4, preceitos que disciplinam a participação na União Europeia? Porque aparece antes?
"Por maiores que possam ser os benefícios da adesão à UE, a soberania do povo português não pode ser partilhada com instituições estrangeiras."
Não só pode, como o tem sido há cerca de 21 anos, nos termos das normas constitucionais identificadas.
"Porque é que o artigo 3.º tem precedência sobre o artigo 7.º n.º 6 e sobre o artigo 8.º n.º 4, preceitos que disciplinam a participação na União Europeia? Porque aparece antes?"
Porque, havendo contradicções entre estes (um diz que a soberania cabe apenas ao povo português, outros delegam-na a outros povos europeus), deverá ter precedência o artigo com maior força jurídica.
"Não só pode, como o tem sido há cerca de 21 anos, nos termos das normas constitucionais identificadas."
Ou nunca se pediu ao Tribunal Constitucional para se pronunciar sobre a adesão à CEE/UE (esta instituição não pode tomar a iniciativa) ou a eventual "aprovação" serviu outros interesses...
Caro BZ,
Lamento, mas a sua interpretação da articulação dos dois preceitos está errada - é errada sistematicamente, historicamente e teleologicamente. Limita-se a atirar uma asserção não fundamentada de que o artigo 3.º tem "maior força jurídica" (noção sem existência no quadro hermeneutico), pelo que pura e simplesmente devemos ignorar as demais normas, abdicar de uma leitura sistemática e integrada dos preceitos (nem que seja através de uma máxima simples do tipo norma especial afasta norma geral...)
Quanto ao segundo aspecto, ao contrário do que afirma o tribunal constitucional já se pronunciou duas vezes sobre a matéria em causa, nos acórdãos relativos às anteriores iniciativas de referendo, não se tendo pronunciado de forma alguma sobre a inconstitucionalidade da adesão (os fundamentos de chumbo dos referendos foram, em ambos os casos, de natureza diferente, relacionados com a pergunta).
Já agora, o facto de não haver inconstitucionalidade do processo de adesão reside no facto de Portgual ter procedido a prévias revisões da constituição, que introduziram as duas referidas cláusulas europeias.
"Lamento, mas a sua interpretação da articulação dos dois preceitos está errada - é errada sistematicamente, historicamente e teleologicamente."
E empiricamente? Portugal perdeu ou não soberania com a adesão à União Europeia?
"Quanto ao segundo aspecto, ao contrário do que afirma o tribunal constitucional já se pronunciou duas vezes sobre a matéria em causa, nos acórdãos relativos às anteriores iniciativas de referendo, não se tendo pronunciado de forma alguma sobre a inconstitucionalidade da adesão (...)"
Acho curioso que a agenda política portuguesa em relação à União Europeia tenha, nos últimos 30 anos, conseguido excluir o Tribunal Constitucional (e o povo português) do processo.
O preocupante neste post é apenas isto:
Estes liberais só lêem autores dos séculos XVIII e XIX e desconhecem por inteiro a evolução do conceito de soberania...
Caro Pedro Sá, até podemos discutir sobre o "conceito" de soberania mas a questão essencial é esta: o nº 1 do Artigo 3º da CRP define soberania como "indivisível". Como pode, então, a União Europeia ter soberania sobre o Estado português?
Interessante estes "novos conceitos" em que as palavras perdem significado. Dá muito jeito.
lucklucky
Perche non:)
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