sexta-feira, 6 de julho de 2007

Incoerência constitucional

Em anterior post apontei uma contradição na Constituição da República Portuguesa: como pode este documento definir que a soberania portuguesa é "una e indivisível" e ao mesmo tempo permitir a delegação de poderes legislativos à União Europeia?

Ora, hoje em dia, são inúmeras as intervenções das instituições europeias em Portugal. A mais recente:

Portugal tem dois meses para mudar a lei do imposto de matrícula dos automóveis. Caso não siga a orientação da Comissão Europeia, Bruxelas ameaça levar o caso a Tribunal de Justiça das Comunidades.

[SIC]
Regra da primazia ou tentativa para fazer entrar a harmonização fiscal pela porta das traseiras (mais especificamente, pela garagem!)?

É, acima de tudo, inconstitucional:
Artigo 165.º (Reserva relativa de competência legislativa)

1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:

i) Criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas;
Os partidos portugueses nada dizem sobre esta intromissão na nossa soberania. Já estão "domesticados":
Lisboa e Bruxelas assinaram [2 de Julho] o novo Quadro de apoios financeiros da UE a Portugal, que se traduzirá em investimentos de 40 mil milhões de euros no país até 2013, repartidos entre dinheiros comunitários e verbas públicas e privadas do país.

[Público]

4 comentários:

Pedro Delgado Alves disse...

Caro BZ,
Não, a intervenção comunitária em matéria de IVA não é inconstitucional. Lembra-se daqueles dois preceitos da constituição de que lhe falei em anterior post e cuja existência teima em negar em tudo o que escreve sobre integração europeia, o artigo 7.º n.º 6 e o artigo 8.º n.º 4? Eis o fundamento para a aplicação directa de regulamentos na ordem interna e para o efeito directo e obrigação de transposição das directivas.

A soberania é de facto susceptível de ser exercida em comum, há um comando que o permite. E se ainda não percebeu como é que ela pode ser una e indivisível eu explico: a integração europeia permite o seu exercício em conjunto no quadro europeu, a sua delegação nas instituições comunitárias e da UE. Contudo, a titularidade continua a ser do Estado de Português, que continua a ser plenamente livre de voltar a exercê-la orgulhosamente só - basta sair da UE (algo que, já agora, o Tratado Constitucional e o provável futuro tratado reformador prevêm expresamente).

Que o processo de integração comunitária pressupõe partilha de soberania, compressão das competências reservadas da assembleia e uma série de outros efeitos na ordem jurídica portuguesa já todos os sabemos desde a adesão. E claro que podemos discutir a bondade da solução, a oportunidade política, o rumo traçado. Agora o que não podemos é pretender que estamos perante uma inconstitucionalidade, uma vez que o texto da lei fundamental é claro quanto à matéria.

AMN disse...

Concordo com o título do post mas, como o Pedro Delgado Alves, tendo a discordar das conclusões que retiras quanto à consitucionalidade desta precisa intervenção comunitária. A CRP é um documento incoerente, já de si, mas profundamente desadaptado face à integração europeia.

Questão diferente é saber como o primado do direito comunitário, imposto jurisprudencialmente, pôde ser aceite ao longo destes anos sem uma decisão política, clara e assumida, nesse sentido.

Um abraço,
a.

BZ disse...

Pedro Delgado Alves:
"Lembra-se daqueles dois preceitos da constituição de que lhe falei em anterior post e cuja existência teima em negar em tudo o que escreve sobre integração europeia, o artigo 7.º n.º 6 e o artigo 8.º n.º 4? Eis o fundamento para a aplicação directa de regulamentos na ordem interna e para o efeito directo e obrigação de transposição das directivas."

Não nego a existência de tais preceitos. Defendo, sim, é que tais preceitos contradizem o nº 1 do Artigo 3º.

A questão essencial é, portanto, saber se deve haver uma revisão constituicional que elimine da CRP a indivisibilidade da soberania do Estado português ou a saída da União Europeia.

BZ disse...

AMN:
"Concordo com o título do post mas, como o Pedro Delgado Alves, tendo a discordar das conclusões que retiras quanto à consitucionalidade desta precisa intervenção comunitária."

Respondi ao Pedro Delgado Alves no anterior comentário.

"Questão diferente é saber como o primado do direito comunitário, imposto jurisprudencialmente, pôde ser aceite ao longo destes anos sem uma decisão política, clara e assumida, nesse sentido."

Aqui está um dos defeitos da nossa constituição (e muitas outras). Devem artigos contraditórios constar da Constituição sem o devido escrutínio constituicional? Por outras palavras, devem ser apenas os políticos a decidir sobre a versão final da Constituição?